A Canção do Velho Rei, Capítulo II
Dragon Awakens - Theodor Kittelsen (c. 1900)
I.
Hadutor - teu Machado - louvor d’um Tempo passado
Bardiche infrigidado, perdição de minh’alma!
Se quando meu Rei mataste, tal hache entesado
Criaste - protervo varlete de tua vesânia -
Em qual poder soergueu-se a Ilha de tua Realma?
II.
Com feras não discuto, não ergo
Machado hirsuto, nenhuma vesga de arma bronca;
Não versejo, não semeio, de Mortos
Apenas entendo - sou Ynntgrad da Ilha-Honra.
E assim falaram por dias. A criatura escamada e negra era o dragão, erguida, soslaiada através de um monte branco por um homem meio corpóreo, meio espectro. Seus companheiros não o viam ter com pábulo algum, nem um cibalho que fosse, ainda que se erguesse a rivalizar um moinho de cevada; Ynntgrad era forte como um uroque. Sua barba basta se dividia penteada, arrefecida de gelo, em três pontas bastas, finas como bassoura de pelos de zibelina. O elmo mascarado se abria na altura dos olhos aquosos, presentes, onde um único chifre baio se entronava sobre o ferro entortado.
Dragão algum poderá entoar minha canção. Não há nada senão uma única força capaz de destronar o sifão que impus a este mundo, crimes eternamente impunes que cometi contra a Lua, e esta não nomeio. Esta não vejo, não sinto. Eu a sou.
Em Dunstad morreram-se as esperanças todas. A borrasca eterna ceifou as almas de vivos e mortos, eternamente fremente em seu movimento moroso, sempre adiante, que um dia há de encobrir o mundo. Não é eterno meu cativeiro; minha alma difusa não promove degelo.
Então, diz-me tu, Ynntgrad, já que não podes controlar-me por completo; canta tu a canção que me inquires!
Não há canção a ser recitada, Haak. O tempo que se estilhaçou a transformou em sussurro transladado. Quiça se desde o principio eu partisse…
Às margens do congelado Sorhofn que fora um braço menor do Tadrarni eu respirei fundo. Meus camaradas de armas eram todos esbranquiçados de neve pura, flocos tão delicados e tão numerosos que não se enxergava nada sem um archote oleado: penumbra e as espirais estridentes de frieza que matava, e não tínhamos medo. É que éramos jovens e éramos também muitos. Nosso comandante era um homem digno de outra canção, uma maior e mais honrada que a minha.
“Não são lupinos comuns”, redarguiu ao vento curado o jovem Hrodulf da barba afogueada. “Estamos a só algumas centenas de braças de Trovudger. Tomamos o curso pedrado até o estuário e voltamos, o que dizem?”
“Podes voltar, pungibarba.” dissera eu então, ou penso. “É tempo de vontade e sacrifício para os varões da heptarquia”. Ainda àquele tempo desfraldávamos a bandeira de um dos sete reis. Eventualmente contarei de que sorte vieram a perecer, e como eu prevaleci a reger sobre suas carcaças, inócuo, ínfero como verme.
É que enfrentávamos inimigo notório. Em Yatmor o Rei Penitente nos mandara para o oeste, para os sopés das neves perpétuas de Grindyria. Os castelos de gelo que se formavam na bocarra do mar, a não muitas ligas dali, revelavam criaturas bisbórrias, restos entumecidos de cadáveres ancestrais. Os protetores das prosápias foram os primeiros a desquiciar o gelo e tomar tramontana em direção à terra, arraigando relatos de vilões malgradados. Tais lobunos haviam sido escamoteados até a tundra por um grupo mais savante que o nosso, que por sua vez nos julgou mais savantes para a matança. Era esta então a estroina natureza das coisas.
Seria tão simplório igualmente dizer que morreram todos naquela noite de lua oculta. Na borla do dia seguinte, aos olhos do ocaso, eu já me encontrava em outra palpabilidade; escrevia já, então, em pergaminho opuscular, a Canção que vos narro.
Haak se empoleirava sobre um pico quebradiço, febril, todo munido de noite férrea que era a grossa armadura quitinosa que o encobria. Seus oculares breves e rajados deviam ser algo visto em répteis antigos daquele mundo, avermelhados de um pigmento, no entanto, inexistente em qualquer lugar que fosse. Quem os visse jamais os deixaria de fitar. “Canta, Ynntgrad, Rei da Honra. A Primeira Canção é a regente. E dizia ela: os Homens mortais podem-se divinar, mas a alma mortal em cohorte estará.” Não voou, mas permaneceu, ouvindo o morto-vivo falar.
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