A Canção do Velho Rei, Capítulo I

 

Soria Moria Palace — Theodor Kittelsen (1900)
 

Havia canções que ele cantava na infância. Quais eram elas? Não as lembrava, pois à época era verde o mundo. As planícies ensolaradas destoavam os olhos do trigo douro que galgava os terrenos, sulcando por aqui e por ali em um riacho de pedrinhas; era certo que um rapaz daquela idade só pudesse lembrar de sua mãe, do abraço caloroso nas noites frias em que o inverno mostrava suas presas e as mãos fortes do pai, nunca abertas de fato, sempre entornadas em veias dilatadas, fechadas ao redor de um cabo de machado ou enxada. Guerra e plantio vieram com a adolescência, e foi quando pela primeira vez queimou-se com o gelo. Fora uma criança quieta, mesmo quando morreu o pai. Vira as palmas das mãos dele então. Eram mãos calejadas, duras como o barro do chão que já não mais havia, o chão que jamais veria por causa da neve sempre-branca. E vira também o barco partir, ornamentado daquelas flores então perenes, mar adentro, até perder-se para muito além da névoa gélida. Nunca mais as veria de novo; aquelas flores nunca mais estouraram num inverno de Dunstad, nem jamais retornou o pai do mundo dos mortos. Era enfim, a hora de florescer num homem, um homem que também não retornaria mais àquele mundo porque já ia ele morrendo. E com o pai, fora-se o último que o vivera; crescera um homem expatriado, sem nada além do machado. A neve tirara-lhe a mãe, a enxada, o pai.

Uma destas canções avisava contra um perigo antigo. Mas ele a sonhara antes, mesmo quando já a havia esquecido entre os muitos invernos infinitos, os verões marcados na pedra como lembranças dos ciclos lunares inexistentes. A ranhura havia apodrecido cada uma das antigas coisas, e eram os flocos de neve sinonímias de morte, como o sangue. Em cálices de vinhos de terras distantes refastelou-se, com camaradas ou sem eles. Em noites embebedadas tropeçou na própria espada, sendo o machado do pai uma lembrança à lareira da casa que o jarl lhe dera; era herói. Morreria e seria um nome. O pai secretamente pretendia fazê-lo prometer, um dia, que ele se tornasse um nome, antes de ter o fio cortado e não fadado por uma coluna tão grande de morte que mesmo os antigos hesitariam em chamá-la de gelo.


E eu vos via, eu vos via de cima. Ainda que eu o observasse, não havia sina; era ordem de Meu Senhor que eu o escoltasse, e assim fazendo, não pude deixar de notar: eras homem de alma velha. E batendo minhas asas, calado, sem permear som ou expressar ideia por força interior para além das muralhas da tua mente frágil, reconheci-te. Tua consciência se espalha por todas as palavras que falo; tua mente já era então minha. Foste apenas cedendo, cedendo, e quando embarcaste no barco de outro pergaminho, um em que não devo nem quero tocar, já eras meu aos poucos. As visões do erudito eram minhas, eu vos mostrei o caminho. Testemunhaste, então, aquilo que eu queria. Mas dirias tu que aconteceria o que se sucedeu?; fizestes-me teu lacaio. E agora voo. Eternamente voo como teu fiel, e meu antigo Senhor já sem trono jaz calado, preso dentro de si mesmo, graças a ti. Calaste o inverno, mas mataste a ti mesmo. Sorris, então, das glórias perfídias que alcançaste? Vilipêndio tamanho é jazigo celeste, ordem áurea onde descansam meus ossos de vida. Os nunca verás.

 

Forças inexplicáveis fluem sob meu corpo; o rei jaz morto. Meu machado, Hadutor, é negro como obsidiana. A pedra meteórica no qual foi forjado era a última lágrima do etéreo-rei do Oitavo Mundo, que já não é mais. Um dragão negro voa sobre mim, um aúgurio antigo de algo que desconheço. E então, tornei-me o que meu pai envisionava. E agora ele descansa, nos Salões da Honra, em morte-vida eterna, prisão anti-lunar dos nórdicos honrados.

A honra real é para todos; meu pai não possuía menos honra por ter sido levado por um pico de gelo. E ainda assim o Sol só abrange aqueles que caíram d’espada em mãos; a injustiça comigo é cortada pelo gume de Hadutor. Hvilevig nunca verei, nem este dragão, que agora desce, e se aproxima, o que quer ele?; mas, ainda assim, meu pai viverá eternamente como homem honrado. E a névoa eterna que encobriu Dunstad em neves ternas jamais o impedirá de degustar os prazeres da luta e do hidromel no Descansol.

 

Eu o vejo. Em palavras escritas nos anais de outro mundo falam sobre ti, Empíreo Ynntgrad da Coroa de Gelo. Coroa que não é tua; coroa que não é tua! Meu antigo Senhor que agora descansa e tu o guardas, eternamente cativas o gelo que não o deixa apodrecer… e assim ambos gêmeos se agitam no profundo templo de Sovntuld em que viestes a te envolver. Mas ainda sais, tu podeis!? O que te impede de trazerdes ao mundo o que queria ele? És tu uma mera sombra?; destes vida em morte aos mortos-vivos, os draugar de Dunstad que vagavam, entre eles teu pai. Fundastes teus salões morosos de bronze e hidromel fumegante, turíbulos incensórios ascendendo aos céus, imortais concubinas prometidas. Que queres mais? És um rei no gelo, e não podeis apodrecer. Levanta-te, Ynntgrad Coroa-de-Gelo! O gelo e a morte foram eternamente entrelaçados numa dança eterna de poder por Ele, que me proibistes de nomear, mas não de exultar! Ynntgrad, levanta-te!

 

Cala-te, Haak! Eu ordenei que te ajoelhastes e assim fizestes. Malkar morreu e sua lágrima forjou uma arma capaz de cortar fora as maledicências tridimensionais que ele impôs à tua alma imortal. Mas teu corpo roto é que fala; não a tens mais. Ela é minha, como os antigos homens eram capazes de tomar as almas dos dragões, um poder que fiz meu à força. Portanto eu ordeno. Melhor fazeis, canta uma canção daquele tempo, Haak, diz-me tu o que ainda lembras; faz da tua Voz poderosa um instrumento de apocalipse profano
ao divino, que sou Eu.


I.


Papiros predisseram, antigos no frio

Que quando erguem-se as noites gélidas

Recai sobre o mundo um sifão sombrio

Asas negras que trazem desvario


(Haak que à morte sucumbiu)


Com uma fome que devora mundos

Nasci para as vidas ceifar

Quantas almas tomei de moribundos 

Já eu mesmo não sei precisar...

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